O Português Errante

Saudades do futuro

“Eu seria a maçã que teria esborrachado esse relaxado Newton, caso me tivesse calhado em sorte cair da tal lendária e sombrosa macieira.”

Jantar de amigalhaços de sempre. No aquecimento há conversas sobre colesterol, ácido úrico, PSA, triglicéridos e outros males. Isto tudo como se estivéssemos interessadíssimos nesses temas e nos condoessemos verdadeiramente com as análises estratosféricas uns dos outros. Chega mesmo a haver uns “Epáh tens de ter cuidado com isso” e uns “Tu ainda tomas sinvastatina? Eu já tomo rosuvastatina, é muito melhor!”. Neste mesmo aquecimento, começam as minis e as entradas. Pão de Rio Maior, chouriço assado, laticínios de vários herbívoros de uma panóplia de proveniências, bolachas salgadas, presunto, civilizados canapés com queijo creme, salmão e alcaparras, devidamente regados com limão e salpicados com pimenta moída, que provocam gáudio na populaça! “Estás em grande!” dizem eles. Entretanto começam a chegar as garrafas da Quinta do Espinho, trazidas pelo produtor. Discutem-se colheitas, reservas, brancos e tintos, roda-se o vinho, cheira-se o copo e, entrando sem pedir licença, nem ninguém dar por isso, o modo “ideiazinhas de m****” ativa-se de mansinho.

– “Epáh, e se voltássemos às montanhas?!”

Pára tudo! Tenho de fazer aqui um pequeno interregno para contextualização. Este é o meu velho grupo de montanha. Foi com eles que, em diferentes ocasiões, subi ao Almanzor, ao Collado Jermoso, ao Monte Perdido, ao J’bel Toubkal e a outros cumes. Estávamos nos trintas e nessa altura não havia cá análises nem tretas. Acabávamos de fumar um cigarro e bora lá para cima carregadinhos de ácido úrico, colesterol e coisas! Tínhamos sempre grandes planos, travessias de vários dias que incluíam outros tantos cumes, mas chegávamos ao primeiro sítio e, habitualmente, ficávamos lá acampados a comer massas desidratadas, chocolates e enchidos com pão seco, enquanto contemplávamos muito, fumávamos mais e discutíamos quem ia descer para trazer água da fonte. Entretanto, a meia idade fez das suas e hoje em dia, temos um maratonista, um outro tipo que desafia a gravidade com o seu peso pluma, um terceiro que levanta poeira, paus e pedras à sua passagem de bicicleta de montanha e eu. Não vos quero maçar com o extenso rol de qualidades que me assiste nos dias que correm, digamos apenas que a gravidade não se sente desafiada por mim. Eu seria a maçã que teria esborrachado esse relaxado Newton, caso me tivesse calhado em sorte cair da tal lendária e sombrosa macieira.

– “Isso era em grande!”

Pára tudo de novo! Como se percebe pela resposta acima, o perigo destas interrogações é que, por força da meia idade, são promovidas a desafios e há quem não resista a ir a jogo. Os que ainda não estavam inteiramente convencidos mas não queriam dar parte fraca, sentam-se à mesa e a conversa continua noutro sentido, a esmola do Costa, a tragicomédia da TAP, o perigo vermelho à nossa porta, o Mundial e temas quejandos.

Chega o pernil, alojado na travessa Pirex ainda a borbulhar, emanando um aroma que me fez acreditar no futuro da humanidade! Seguiram-se as batatas assadas com alecrim e alho e vá de abrir mais uma garrafinha para ajudar a empurrar o porco. 2018 foi generoso para com esta quinta duriense! A conversa continuava animada. Por vezes é bom estarmos sentados em torno de uma mesa onde todos são da mesma cor política e clubística, habitualmente há mais gargalhada e menos exaltação.

Já do pernil só sobrava o osso para contar a história e batatas nem vê-las, quando é anunciada a melhor sobremesa de Campo de Ourique: Pudim Abade de Priscos. Não só porque o pudim é divino, mas também porque depois do pernil, abade era um bom termo para descrever o meu estado de então. Com toda esta sucessão de comida já me tinha esquecido que o modo “ideiazinhas de m****” não se desativa sozinho e, aqui e ali, vai-nos lembrando da sua existência.

– “Borra voltarr ó Collado Jerrmoso!”

Ora cá está o maldito modo, aproveitando-se dos presentes terem já o tanque carregado de vinho, para fazer das suas! Esse trilho é lindo, o Collado Jermoso é um sítio mágico mas não é de helicóptero que se chega lá… foi então que se agigantou a psicologia de rebanho, o instinto tomou conta de tudo e a razão, bom a razão não era para ali chamada.

– “Eu até já nem fumo nem nada!”

Dizia o cretino entusiasmado, de olhos postos no infinito, pupilas dilatadas e cabelos em pé. Como se fumar ou não, fosse adiantar alguma coisa para fazer face aos 20 kg que tinha ganho desde a última vez, ou apagasse os traços da sua vida marcadamente burguesa e sedentária! Percebia-se no seu olhar que, por essa altura, já só pensava em vistas deslumbrantes, sol a pôr-se em cima de um mar de nuvens, camaradagem, jantarada de glorificação das dificuldades vencidas, sidra, queso azul de Valdeon, embutidos de jabali a la pimienta, fabada asturiana, entre outros.

Mas vamos puxar os pés do cretino para o chão, de novo. Esta rapaziada fez inúmeros programas destes e não devia embarcar em cantigas. Aquele era o momento para a clarividência. Era a altura de lembrar que o subconsciente é diabolicamente sábio e mostra-nos só as melhores partes (desconfio que sem este ardil não haveria montanhistas), ocultando habilmente aquela marca da descida vertiginosa na curva do entusiasmo montanheiro, pela qual todos passamos ao fim de duas ou três horas de trilho e que provoca a fatídica interrogação: “como é que eu fui cair nesta outra vez?”. Afinal, em comparação ao paraíso atrás descrito, o que é que são 10 ou 15 Kms a deglutir curvas de nível com uma mochila às costas (que na melhor das hipóteses pesa 16 Kg), num terreno próprio para caprinos, em que o suor corre em bica com maior caudal do que o cantil permite repor, em que as pernas nos pedem misericórdia e quando finalmente cedemos, essa curta (para não arrefecer os músculos) pausa é feita a torrar ao sol e a beber água aquecida (por esse mesmo sol) com acentuado sabor a plástico?

Mas retomando o ritmo iludido desta história, o ativista da agenda “pró-montanha” vai buscar ao bolso do casaco, o velho mapa desenhado pelo Miguel Angel Adrados, já rasgado em alguns vincos. Desdobrou-o e estendeu-o em cima da mesa enquanto todos afastávamos pratos, copos e travessas. Dá-se um momento solene de contemplação saudosista, revelado por um sorriso idiota na cara de cada um. Relembram-se dificuldades passadas em alguns sítios, histórias de mazelas e maus humores, sustos, mas também memórias de longos momentos de absorção de vistas largas, inspiração de um ar de pureza inigualável, o cinzento da pedra que contrasta com o verde das ervas, as cabras, os vales intermináveis, os muretes de pedra em círculo para defender as tendas das intempéries, os casteletes. Todas essas recordações dançam em torno de nós, como na banda desenhada quando levam uma cacetada e ficam a ver pássaros e sinos e estrelas. Raios partam este mapa do demónio!

Acabou por ser o empurrão final, aquele “bocadinho assim” que ainda faltava para convencer os mais céticos de entre nós. Apesar de todos os alarmes tocarem de forma ensurdecedora a cada recordação, todos os semáforos estarem encarnados, todos os sinais de sentido proibido terem o dobro do tamanho regulamentar, o desafio fala mais alto. Ainda não deitei a toalha ao ring. Posso já não ser o sofrível e vagaroso montanhista que um dia fui, mas ainda oiço o “Call of the wild”. Sinto aquela necessidade de voltar para casa com saudades de todos e ter histórias para contar. De prolongar o mais possível aquele planalto do ciclo de vida, antes do declínio. Sim, porque a felicidade, tal como a saúde, é um estado passageiro que não augura nada de bom. Por isso, o melhor é aproveitar as ocasiões que nos permitem pôr batom no porco, enquanto ainda há batom. E porco!

Resta-me apenas dizer-vos que este texto não foi mais do que uma forma original de desafiar três amigos. Na verdade, nada disto aconteceu. Mas em breve vai acontecer, chamem-lhe “self-fulfilling prophecy”.

“The mountains are calling, and I must go.”

John Muir

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