O Português Errante

E eu a vê-los crescer

“Lembro-me vagamente da conjugação de palavras “estômago” e “galinha” estar presente na primeira dentada e, lentamente, se ir afastando a cada moela entalada em pão ensopado naquele molho gordurosamente divino, que me besuntava os dedos.”

Em miúdo era um tipo particularmente “niquento”, como descreve a minha mãe no seu dialeto baixo-alentejano. O bife, as batatas fritas, o ovo, a massa com carne (aportuguesamento do Esparguete à Bolonhesa) e outros pratos sem grande complexidade de cores ou texturas, eram deglutidos com relativo prazer. Tudo o resto era motivo para nervos em franja nas refeições da família, onde os presentes faziam sentir a sua impaciência perante o zelo excessivo que eu empregava na separação dos ingredientes, de forma a comer os que conseguia e enjeitar os que desprezava.

Tenho a felicidade de me lembrar do exato momento em que abandonei definitivamente a minha condição de niquento e abracei, com a alma, todas as alegrias relacionadas com o ato de comer. Aconteceu aos quinze anos, algures no centro do país, com uma travessa de moelas cujo já de si fantástico sabor, foi seriamente potenciado pela fome que sentia naquele momento. Comi como se a próxima refeição fosse incerta, deixando incrédulos os meus comensais que inocentemente me convidaram, por cortesia, calculo que acreditando que o “miúdo seria comedido”. Lembro-me vagamente da conjugação de palavras “estômago” e “galinha” estar presente na primeira dentada e, lentamente, se ir afastando a cada moela entalada em pão ensopado naquele molho gordurosamente divino, que me besuntava os dedos. Os presentes olhavam-me por cima dos seus sorrisos amarelos, sem saberem como reagir a tamanha selvajaria. E foi coisa bem topada, pois desconfio que só esse escrutínio me impediu de despejar uma das cervejas que estava na mesa, de forma a empurrar aquilo tudo, brindando-os com um sonoro arroto e uma gargalhada, derradeiros sinais de satisfação e cumplicidade!

Por vezes vou almoçar com os meus filhos à revelia da minha mulher. Um dos destinos é o Rui dos Pregos, ali nas Docas. É um restaurante simples, com um serviço organizado e pratos despretensiosos. Gosto daquilo porque me permite ter um almoço numa esplanada com vista para os barcos e dá direito a pôr a cara ao sol. Quando lá vou, peço sempre umas moelas de entrada e recordo (para mim) o episódio que acima descrevi. Os meus filhos, niquentos como eu era, ainda olham com desconfiança tudo o que é novidade e a recomendação do pai é indiferente (nunca devia ter insistido nas virtudes da cabidela ou da lampreia). Mas o “Rui” tem uma particular atenção à apresentação: nada de nacos de estômago de galinha a boiar no molho! É tudo cortado em bocados pequenos e apelativos, o que favorece o ato de “picar” enquanto se conversa. E lá arriscaram eles, cada um com o seu civilizado garfo (as gerações compensam-se) e seu bocado de torrada com manteiga. Encantaram-se na textura, no sabor e no programa de estar ali com o pai (eu, pelo menos, gosto de acreditar nesta última afirmação).

Com moelas ou sem elas, sabe-me bem vê-los crescer.

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