O Português Errante

Não te deixarei partir, Obélix.

“Havia um quê de festejo gaulês nestes programas, mas com evidentes melhorias: eram vários Obélixes mas nenhum Asterix para os chatear e lembrar da história do caldeirão. No fundo tratava-se da aldeia gaulesa a nadar em esteróides ribatejanos.”

Frequentei em tempos uma taberna que nem nome (e provavelmente nem licença) tinha, que me foi dada a conhecer por um amigo meu. Apenas sabíamos o nome do proprietário: Fernando de Portugal. Era em Santarém, cidade que na altura ainda se prestava ao vernáculo. A dita tasca nasceu como solução para um problema do Fernando quem, não conseguindo escoar a sua produção de vinho, decidiu fundar uma taberna na sua adega. Acabava o tinto, fechava a tasca. Embora isto se passasse no pré-histórico início do milénio, a experiência era singular até para essa época.

Estacionava-se na rua e entrava-se no terreno a descer. Chegados à adega, à direita havia três ou quatro enormes pipos de vinho em madeira. De um deles saía um tubo de rega preto, enrolado, que estava dentro de um alguidar com água e gelo, no chão. Servia o propósito de refrescar o vinho. Nunca tinha visto tal frigorífico mas achei genial. Na outra ponta desse mesmo tubo em espiral havia uma torneira, daquelas que têm uma haste horizontal. Era daí que saía o carrascão fresquinho, direto para o jarro de litro que posteriormente seguia para animar as hostes. Ainda desse lado direito havia uma ou duas mesas compridas onde se sentavam os expectáveis nativos, em alegre convívio, alguns deles lascando umas maçãs (an apple a day keeps the doctor away) acompanhando-as com uns copos de tinto.

Em frente pela esquerda, a um canto, estava um misto de lareira com assador, lugar ocupado pelo Fernando. Dava-lhe uma visão panorâmica sobre a sala, enquanto punha as febras ao lume. A grelha não era enorme mas o fogo era alimentado a azinho, o que acrescentava um perfume particular aos petiscos.

À esquerda havia uma entrada que dava acesso a uma segunda sala onde também havia mesas, mas sobretudo havia um frigorífico doméstico (daqueles que ainda tinha gancho no fecho da porta e tudo) onde se escondia o tesouro: costeletas de borrego, febras, entrecosto, farinheiras, entremeadas, chouriço, morcela e tudo o que possam imaginar que seja tradicionalmente assável no carvão. Abrir a porta daquele frigorífico, era uma sensação concerteza próxima da que o John Travolta teve no Pulp Fiction, quando abriu a mala e saiu lá de dentro uma luz intensa.

Neste self-service ribatejano, a ideia era pegar numa das travessas de alumínio empilhadas numa mesa ao lado, enchê-la à mão desnuda (ali o conceito de segurança alimentar era um mistério) com tudo o que queríamos comer na próxima hora e levá-la ao Fernando quem, se estivesse bem disposto assava, se não, “assa tu e não me chateies”. Para quem tem dificuldade em perceber o conceito, era quase como irmos ao Belcanto, entrar na cozinha do Avillez, diretos ao frigorífico, abrir a porta, escolher o que queríamos comer entre lombo de vaca maturado, pombo, trufas ou carabineiros, entregar tudo ao homem e irmo-nos sentar à mesa, à espera que o Zé entregasse a refeição, enquanto despejávamos umas quantas garrafas de Petrus, facilitadas por azeitonas de Kalamata e focaccia refrescada em bruma de azeite siciliano.

Na outra ponta desse corredor, cheio de toneis de vinho daqueles de cimento, adornados com cabeças de touro e cartazes de tourada (afinal de contas estávamos em Santarém), havia uma outra sala à direita, com uma mesa comprida onde cabiam vários comensais. Essa era A sala e o facto de estarmos rodeados de pipas de vinho trazia-nos o descansado conforto de saber que era indiferente a frequência com que visitávamos a fonte, pois havia a certeza de que esta nunca secaria.

Febras e costeletas de vários porcos e borregos eram assadas, copiosas quantidades de vinho eram servidas, memórias de glórias passadas e planos futuros eram discutidos, fados eram cantados. Havia um quê de festejo gaulês nestes programas, mas com evidentes melhorias: eram vários Obélixes mas nenhum Asterix para os chatear e lembrar da história do caldeirão. No fundo tratava-se da aldeia gaulesa a nadar em esteróides ribatejanos.

No final do repasto chamava-se o Fernando, ele deitava uma olhadela por alto sobre a mesa cheia de pratos, copos, jarros, ossos e nódoas de vinho e dizia com ar desinteressado “isso dá 500 paus a cada um, vá” (entenda-se 2,5 euros, em moeda estrangeira). Nunca percebi a matemática do homem: tivéssemos nós comido um porco inteiro ou uma linguiça assada, a conta era a mesma. Mas davam umas para as outras.

Sofri um rude golpe quando tive notícia do fecho desta tasca. Para mim, estes programas regados a álcool e alimentados a entremeadas, eram o pináculo da celebração da amizade. Sem filtros, sem regras, sem limites, sem vigilantes mas sobretudo com vários Obélixes e gargalhada de tirar o fôlego.

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