O Português Errante

Catchupa nha cretcheu

“Assim aconteceu boa parte dos meus anos 90s: noites no Bairro Alto começadas no Arroz Doce a cantar fados com a Tia Alice (DEP) e seus pontapés e terminadas na Rua do Poço dos Negros ou nas roulottes da 24 de Julho, a ensopar tudo.”

Tenho perto de mim um restaurante cabo-verdiano onde vou ocasionalmente. A Tambarina, de seu nome, fica na Rua do Poço dos Negros. Chego, espreito para a cozinha e lá está a senhora responsável pela minha boa disposição nos próximos quarenta minutos a receber-me com um sorriso e um “mnhum dia”.

Sou atendido pelo dono, cumprimentamo-nos e peço uma cachupa do dia anterior (“refogada”), com ovo e arroz à parte e uma água natural (nada de álcool que tenho de trabalhar à tarde).

Enquanto espero, peço para pôr a música mais baixo (o anátema das colunas bluetooth já lá chegou e nem sequer era uma morna) chega a água, viro o prato, desvio o guardanapo para o lado (nada de guardanapo no colo, há muito que o diâmetro da barriga inutilizou esse gesto civilizado). Pouco depois chega o aperitivo caseiro, pela mão do Domingos, feito de grogue e especiarias, mais para o doce, servido em copo de decilitro. Para pôr termo a este rito inicial, vem a molheira com o picante caseiro (uma colher de chá por prato e isto para os que já têm alguma experiência). Porque estou só, vou olhando para o telefone, vejo as notícias, bebo o aperitivo para molhar os pés às mágoas e pouco depois lá chega ela. A cachupa é uma espécie de “vê lá o que há aí na horta e traz tudo”. Tem versões diferentes em ilhas diferentes, dentro dessas tem a versão pobre e a versão rica à qual juntam carne ou peixe, consoante a ginasticada economia doméstica o permitir.

Esta cachupa é molhada. Já não tem o caldo do dia anterior, pois já foi absorvido no refogado, ficando com uma textura mais cremosa. Poucas semelhanças tem com a cachupa que eu comia antigamente numa pensão de terceiro andar num prédio da mesma rua, um pouco mais acima. Foi aí que conheci este prato, através do meu amigo Miguel Dias, que certa noite decidiu lançar-se na aventura da descoberta da mítica pensão de que se ouvia falar mas ninguém sabia ao certo onde era. Não sei exatamente como é que lá chegámos mas lembro-me distintamente de tocar à campainha, alguém assomar ao postigo, a porta abre-se e entrámos numa dimensão paralela.

Começava por um corredor com uns tipos sentados no chão, dedicados a práticas ilícitas. Corredor esse que desembocava à esquerda na cozinha, em frente numa casa de banho e à direita continuava até à sala.

A cozinha era para os habitués. Era uma cozinha antiga, de pedra, com uma mesa ao centro, um frigorífico doméstico atestado de cerveja, um alguidar no chão com água cinzenta escura, para onde se atiravam os talheres sujos e provavelmente onde também se “lavavam” os mesmos. À mesa sentavam-se, como disse, os habitués. Fazia-me lembrar aqueles cafés de fronteira descritos pelo Torga, onde os contrabandistas se encontravam com os guardas e conviviam todos em amena cavaqueira. Ali, o ambiente era composto por polícias, prostitutas e respetivos chulos, o ocasional traveco, outros personagens patibulares, a “Tia” (cozinheira dessa cachupa inigualável) quiçá dona da pensão e o presumível “sobrinho” de quem nunca soube o nome mas que servia às mesas. Ali não havia extratos profissionais, o que os unia era a fome e todos comiam vindo da mesma panela à mesma mesa.

A casa de banho era por si só uma aventura. Era como se entrasse num RPG onde havia que decidir o que fazer em seguida, até conseguir passar para o próximo nível. Qualquer passo em falso e o pior podia acontecer. Entrava-se, à esquerda era o lavatório, à direita a sanita e ao fundo a banheira. Quando lá fui pela primeira vez, o estado da sanita era de tal ordem que fiquei capaz de jurar que havia um bicho ruim com dentes no meio daquilo, o que me levou a virar-me e tratar do meu assunto no lavatório. Sim, eu sei que a decisão não foi do mais fino recorte civilizacional, mas em minha defesa, era tarde, eu estava longe do meu melhor e o ambiente era claramente hostil.

A sala era a antecâmara onde se formavam os aspirantes a frequentar a cozinha. Entrava-se, havia uma estante em curva e um sofá. A estante estava vazia de livros mas tinha o ocasional bibelot em cama de renda. Havia sete ou oito mesas daquelas antigas com tampo de fórmica a imitar madeira, como nas cozinhas dos 70s e cadeiras a condizer. Em cima de cada mesa descansava um cinzeiro, que mais não era do que uma lata de atum. A fauna local parecia saída do Red Angel Dragnet dos Clash: “ (…) All the animals come out at night: queens, fairies, dopers, junkies, sick, venal (…) “. E havia um gato. Amarelo.

Quando o “sobrinho” chegava com os pratos, garfos e toalhetes de papel, fazia-se o pedido e daí a um tempo lá aparecia a travessa de alumínio com a cachupa coberta por dois ovos a escorrer gema e o frasco de Tofina cheio de molho picante caseiro com uma colher de galão para o retirar.

Fui feliz nesses fins de noite em que lá ia forrar o estômago, antes de me entregar ao sono reparador, por vezes através de teletransporte. Essa cachupa era mais seca, trazia esturro, o que lhe dava uma “crocância” inigualável e o sabor era, de facto, excecional.

Sim, o sítio era infecto ao ponto de deixar qualquer experiente inspetor da ASAE catatónico por alguns dias, mas tinha o doce sabor da transgressão. Nunca sabíamos se iríamos sair dali vivos ou pelo menos inteiros. Aquela hora da madrugada prestava-se a acender rastilhos regados com alcool e o desastre ficava logo ao virar da esquina. Ajudava a aumentar o estado de alerta e a acordar para se conseguir chegar a casa ou dar um pulinho ao Incógnito só para ter a triste confirmação de que já estava fechado.

Assim aconteceu boa parte dos meus anos 90s: noites no Bairro Alto começadas no Arroz Doce a cantar fados com a Tia Alice (DEP) e seus pontapés e terminadas na Rua do Poço dos Negros ou nas roulottes da 24 de Julho, a ensopar tudo. Por vezes olho para trás e interrogo-me se teria mesmo de ter sido assim, se era mesmo necessário aquele amor à borga, se não deveria ter havido mais espaço para a responsabilidade, se não devia ter frequentado outro tipo de lugares, se… Náh!

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