O Português Errante

A via da alface

“Quem gosta de cozinhar já sabe que não sai incólume da prática da cozinha. Não podemos querer brincar com o lume e não nos queimarmos. Há um compromisso ou como dizem os estrangeiros um “trade off”: melhorar a prestação na cozinha implica ter mais vontade de comer.”

Deixar de fumar é fácil, já sabemos que o malfeitor é aquele paralelepípedo carregado de cilindros e só temos de evitá-lo. Mantemo-lo por perto para não nos esquecermos da cara do inimigo e olhá-lo nos olhos ocasionalmente, mas sem chegar a vias de facto. Deixar de comer é mais difícil, pois temos de continuar a comer, apenas não aquilo de que gostamos e na quantidade que nos apetece. Ora se o gesto tem de continuar a repetir-se, mais cedo ou mais tarde vamos acabar por pegar, por engano, num torresmo espremido entre dois pedaços de pão alentejano em vez da fatídica folha de alface. Daí até a expressão “é apenas um torresmo”, se transformar em “é apenas um saco de torresmos” e a expressão “uma vez não são vezes” se transformar em “uma vez não são vezes suficientes” é um pauzinho de fósforo a arder.

Vivo, no momento presente, essa luta entre o lobo bom e o lobo mau, o anjo e o diabo, a alface e o torresmo. Não é segredo que comer me dá prazer. Desde cedo me fui ligando às várias facetas da comida. Se estar à mesa é um prazer, não é um prazer menor estar ao fogão a viver o que vou comer em seguida ou sentado no sofá a experimentar aquela modorra filha da gula, que se instala em consequência do desvario alimentar. Conseguir trocar a alegria de comer pela monotonia de comer mal (e poucochinho) é um desafio de proporções bíblicas, que requer forças de vontade em tudo mais valentes do que a minha.

Quem gosta de cozinhar já sabe que não sai incólume da prática da cozinha. Não podemos querer brincar com o lume e não nos queimarmos. Há um compromisso ou como dizem os estrangeiros um “trade off”: melhorar a prestação na cozinha implica ter mais vontade de comer. Não é possível, depois de horas de dedicação a um qualquer prato, não prová-lo no final. Ter mais vontade de comer implica engordar. Engordar implica uma série de outras maleitas que não me apetece descrever, mas que me impedem de viver “la vida loca” e isso arrelia-me. Não porque queira viver la vida loca mas sim por não ter a opção de poder fazê-lo.

Por isso fui procurar uma amiga nova, com o intuito de me consultar com ela. Mandou-me pôr em cuecas, em cima de uma máquina e acabou a abraçar-me com uma fita métrica em redor do tronco. Eu fiquei sem saber o que dizer (nem sequer tinha levado as minhas boxers boas) mas enfim, presumo que haja que tolerar algumas baixas na guerra contra o peso e se uma delas é exibir-me em toda a minha redondez para impressionar neste meu primeiro date, seja feita a sua vontade.

Esta minha nova amiga explicou-me que o meu metabolismo dos 20 anos foi ultrapassado pela nova e mais recente versão dos 50 anos. Trata-se de uma versão mais sensível, menos tolerante mas igualmente caprichosa. Neste meu momento 2.0, tenho tentado (embora sem grande sucesso) ficar-me pelo prazer do ato de cozinhar e das apreciações positivas de quem come, obrigando-me a seguir a via da alface quando é chegado o meu momento de degustar. Via essa, que representa o enorme desafio de assassinar a monotonia sensaborona da clorofila, à força de orégãos, azeite e vinagre. Fosse eu grilo, a alface seria vista com outros olhos e este texto seria diferente. Mas não.

A minha nova amiga marcou-me 2ª consulta para avaliar o meu desempenho e a minha acomodação a este novo modus vivendi. Não fui capaz. Tive de adiar. Não queria que ela se sentisse uma inútil ao avaliar a constância do meu porte. Todos os dias me tomo o peso e todos os dias sou confrontado com os parcos resultados do meu progresso neste meu novo mundo grilo. A cada dia que passa, alguns gramas perdidos fazem a minha alegria, mas desconfio ser vitória de somenos para aquela que marca os pontos na sua exigente tabela e traja o longo manto da experiência na evangelização dos obesos. Se eu já me sinto desiludido, o que fará ela quando for confrontada com a dura realidade do meu gordismo militante e sem remissão.

Querida amiga, se me está a ler, saiba que nada tenho contra si. Como lhe falei, escolhi-a por recomendação de outros gordos (sim nós temos uma comunidade) que hoje em dia nada devem aos bailarinos do Bolshoi no que ao porte diz respeito. A culpa desta vitória de sabor a pouco é inteiramente minha. Quando nos encontrarmos de novo, estarei de semblante carregado e algo ansioso. Já pensei em aplicar uma estratégia de passagem de culpa em que a acuso de as suas recomendações não funcionarem e de tudo isto ter sido um grande engano, ou então pôr as culpas na minha mulher que me obriga a comer o que o resto da família come, pois não se dispõe a fazer o esforço de cozinhar em duas pistas. Mas não sou capaz. A minha bonomia, o seu bom caráter e a enorme dedicação da minha mulher, não me permitem ir por esse caminho, pelo que só me resta admitir que foi por minha culpa, por minha tão grande culpa, que gorei a sua (nossa) expectativa.

Mas, minha amiga, rogo-lhe ainda assim, que não me veja como um caso perdido. Apenas um caso difícil que merecerá porventura uma maior entrega da sua parte. Não pretendo desistir, mas é fácil concluir que não sou santo e por vezes sucumbo às picadelas do tridente do demónio que se entronizou no meu ombro esquerdo. Não desistirei e continuarei a tentar transitar a via da alface. A trilhar o caminho do bem. Mas só para a semana, porque na 6ª tenho um jantar.

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